Dentro de Mim

"Aqui começa o meu descampado Ou o meu jardim cultivado; Aqui começa a minha queda vertiginosa Ou a minha entrada gloriosa; Aqui, somente aqui, Começa o que jamais acabará aqui; Aqui serei muito ou serei pouco, Serei pobre ou serei louco, Serei charco, lago, rio ou mar Serei o que conquistar Aqui serei o que tu quiseres E o que eu quiser, Mas é aqui que tudo começa Aqui e nada mais do que aqui" - Vasco Gonçalves

terça-feira, 3 de agosto de 2004

Tocou-me de um modo particular...

Havia prometido partilhar convosco o acontecimento que mais me chocou, ao longo do livro “Se isto é um Homem” (de Levi). Assim, aqui fica um excerto desse episódio. É um bocadinho longo, mas vale a pena ler.

“Deve passar das vinte e três horas, pois já há um intenso vaivém até ao balde, ao pé do guarda da noite. É um tormento obsceno e uma vergonha indelével: de duas em duas, de três em três horas, temos de nos levantar, para nos libertarmos da grande dose de água que de dia somos obrigados a absorver sob a forma de sopa, para satisfazer a fome; é a mesma água que de noite nos incha os tornozelos e as olheiras, conferindo a todas as fisionomias um aspecto deformado, e cuja eliminação impõe aos rins um trabalho desgastante.
Não se trata só da procissão ao balde; está prescrito que o último utente do balde vá esvaziá-lo na latrina; está prescrito também que de noite não se sai da barraca a não ser em traje de dormir (camisa e cuecas), após a entrega do nosso número ao guarda. Por consequência, é fácil de prever que o guarda da noite procurará exonerar do serviço os seus amigos, os seus companheiros e os proeminentes (…) De repente, o guarda da noite aparece do seu canto e agarra-nos, escrevinha o nosso número, entrega-nos um par de socas de madeira e o balde, e atira-nos para fora no meio da neve, trementes e cheios de sono. Não nos resta senão arrastar-nos até à latrina, com o balde enjoativamente quente a bater contra as pernas nuas; está cheio para além de qualquer limite razoável e, inevitavelmente, com os solavancos, uma parte entorna-se sobre os nossos pés, de forma que, apesar de repugnante, é sempre preferível sermos nós a cumprir esta função que o nosso vizinho de cama.” (uma vez que as pessoas que partilham a cama deitam-se em posições inversas, ficando os pés de um junto à cabeça do outro).